distâncias.

Milena Vieira
3 min readJun 23, 2021

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não lembro do processo que tive para aprender a andar de bicicleta… das quedas e tudo mais. por algum motivo, esses episódios simplesmente não estão na minha memória. sei que era ainda muito nova—meu pai me ensinou. sempre amei andar de bicicleta.
quando fiz 8 anos, ganhei uma bike branca com adesivos coloridos de borboleta. recordo-me que quando minha mãe mandava eu ir buscar pão, nas manhãs de sol, eu ia com ela só para fazer um bom uso da cestinha que ficava na frente (muito embora tivesse que enfrentar um morro enorme no caminho de volta). ela era meu xodó.

quando meus pais se separaram, fomos eu, minha mãe e irmã morar num outro bairro. sem morros, dessa vez. passei a andar de bicicleta ainda mais! meu pai me presenteou com um MP4 e baixava nele minhas músicas prediletas. saía eu, minha bike de borboletas e minha trilha sonora dar voltas repetidas no quarteirão. obviamente, não podia ir longe, mas eu tinha minha imaginação e canções de companhia; então, não era realmente necessário. precisava pedalar e ali era livre.

triste o dia em que ela se tornou pequena demais pra mim, ou eu me tornei grande demais pra ela.

ainda tinha a possibilidade de usar a da minha mãe que, apesar de também não ser do meu tamanho, era mais ajustável; mas não tinha a mesma sensação. parece que o espaço necessário para liberdade cresce na mesma proporção que nosso corpo. eu ambicionava mais.

a falta que eu sentia já não era mais saciada pela minha imaginação, nem o quarteirão me era mundo o suficiente. eu queria mais viver minhas músicas do que elas vivessem em mim. entendi que aquela bicicleta não poderia mais ser foco do meu amor.

anos depois, me encontrei com outra bicicleta numa saída com amigos. ali me deparei com um paralelo irônico: andar de bicicleta não era como andar de bicicleta. demorei um pouco para encontrar equilíbrio e saí com a magrela cambaleando; revivi em parte um processo do qual nem tenho mais recordações.

passar por uma pandemia global faz-me questionar o que é ser livre. foi como se tivesse demarcado meu território de vivência no mundo e ele me mandasse de volta pra casa.

não consigo deixar de me perguntar: se viver era estar lá fora, a ver paisagens, rostos, risos… o que é isso agora?

nas profundezas desse emaranhado de fios, ainda busco aquele que dá sentido a todas as coisas. ainda que a linha do horizonte pareça linear, ela é só outro círculo como aquele quarteirão onde eu dava voltas na minha bicicleta.

minha fome de mundo só o consome em partes e elas me são dadas aos poucos. meu playground cresce à medida em que conheço a realidade no outro.
nossas conexões estão além de teorias e ortodoxias; se eu não vejo o Criador no meu semelhante, não vejo nenhum dos dois. e como poderia eu ponderar sobre liberdade sem considerar aquele que a delimitou?

se foi para a liberdade que Cristo nos libertou, haverá espaço para amar. se há espaço para amar, então eu posso andar de bicicleta e este me será suficiente.

aqui e agora.

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Milena Vieira

cristã, amante de idiomas, fotógrafa por hobbie e escritora por necessidade (própria).