24.

Milena Vieira
5 min readOct 1, 2022

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eu nunca fui boa de etiqueta social.

quando adolescente, eu tinha pavor de ficar sozinha com os convidados de alguma festa (seja junina ou de ano novo) que minha mãe ou irmã dava — mesmo que a festa fosse do meu aniversário. não exatamente pela timidez, apesar de ter sido muito tímida até meus 13 anos, mas porque eu não sabia como agir perto das pessoas. sobre o que conversar. o que oferecer. o que não oferecer. até mesmo quando eu levava algum amigo ou amiga em casa, eu podia estar bem à vontade rindo com a pessoa quando de repente notava algum olhar de reprovação da minha mãe e sabia que estava fazendo algo de errado. esqueci de oferecer água? deixei ela muito tempo sem comer? esqueci de dar um chinelo para ela calçar? esfriou e eu não ofereci um casaco?

acredito que foi nessa época que me tornei mais observadora; não tanto por curiosidade, mas porque queria aprender. queria dar certo.
quem eu mais assistia era minha irmã. quando morávamos juntas, a casa quase sempre tinha gente. comprávamos pizza, fingíamos ver filme (já que todos conversavam durante), ríamos alto de histórias contadas — muita das vezes mais interessantes que o próprio filme; e no final, por que fulano morreu? assim as horas passavam.
minha irmã é como um ímã que traz as pessoas pra perto, porque é fácil estar na presença dela. os assuntos que ela traz fluem, seu humor é natural e descomplicado. parece que ela sempre sabe o que as pessoas precisam. mesmo seu silêncio é confortável.

eu a estudei durante boa parte da minha adolescência. eu queria ser querida e, aparentemente, crianças que se escondem dentro do guarda-roupa (aqui não usado como uma simbologia lgbtqiap+, eu literalmente gostava de me esconder no armário) não são muito populares. mas eu regozijava do silêncio porque ele me dava espaço para idealizar a pessoa que eu desejava ser. então, dos 11 aos 16 eu passei a maior parte do tempo mais dentro da minha cabeça do que fora.

quando a igreja tornou-se uma grande parte da minha vida foi que eu me obriguei a sair do casulo. os projetos de evangelização, peças, danças, ministrações; tudo isso requeria que eu colocasse em prática os anos de aprendizado com a minha irmã. para minha própria surpresa, funcionou. eu podia olhar para mim mesma e ver algo similar a uma jovem funcional — pelo menos — ambivertida. eu ainda precisava do meu silêncio, só não cabia mais dentro do meu guarda-roupa. por mais que eu quisesse muito que ele me levasse a Nárnia.

talvez aqui eu dê um salto no raciocínio, mas conto com a sua compreensão.

acho que quando Chris Martin escreveu “ninguém disse que seria fácil, ninguém disse que seria tão difícil” ele estava nos 20 e poucos. existem tantas vozes a serem ouvidas, tantos exemplos a serem seguidos e tão pouco tempo para sentar-se e aprender. o que antes nos era apresentado como uma ramificação de cores possíveis para se escolher, agora é simplesmente o preto no branco. sua jornada limita-se ao que pode ser feito, geralmente não muito. a vida vai acontecendo numa maratona bem difícil de se acompanhar. e como assim você não sabia que tinha que se alongar para não ter cãimbras no caminho?

de repente, sua história vai acontecendo ao mesmo tempo que contorna diversos fatores externos que desenham onde você pode ou não chegar, o que você pode ou não fazer e ainda (pausa comigo e respira fundo, inspira e expira) deve certificar-se que sua postura não condiz com qualquer sistema de opressão, pois temos que pensar em melhorar essa realidade para as crianças. dá pra acreditar que ainda existem milhares de serzinhos prestes a passar por (quase) tudo isso que a gente tá passando? e as mudanças climáticas?! pra onde vai todo esse lixo insustentável produzido pela indústria capitalista todos os dias????!
tudo um caos, uma bagunça desesperadora. lá fora e aqui dentro, mas certamente lá fora por causa daqui de dentro, de cada um de nós.

“Quero alguém que me diga o que vestir de manhã. Toda manhã. Quero alguém que me diga o que comer. Do que gostar, odiar e ter raiva. O que escutar, qual banda gostar, do que comprar ingressos. Com o que fazer ou não fazer piada. Quero que me digam no que acreditar. Em quem votar. Quem amar e como dizer. Acho que quero que alguém me diga como viver minha vida, padre. Porque até agora acho que eu só errei.” — Fleabag

quando eu observava e aprendia da minha irmã, eu nunca notei o processo de emancipação dela. até porque eu não imaginava que isso existia. e o complicado desse estágio é justamente isso: ele é silencioso, invisível. ninguém te ensina as regras de etiqueta da emancipação. chega um momento em que você precisa criar novos limites (pra si e pros outros), objetivos. e o tempo corre contra você. e aí, alguma das suas personalidades faz essa brincadeira maldosa de te mostrar em power point todas as suas não realizações. ou alguma tia se encarrega disso.

você decide o que fazer e o que der, deu. ou então, a vida acontece e o que der dela, deu. crescer vira algo como “faça o que for, mas faça alguma coisa! mais importante: mostre que está fazendo alguma coisa!”, mesmo que ninguém tenha decretado isso ou ensinado como fazer isso (isso o quê? bom, você tem que saber).

mas ainda assim, eu me arrisco em dizer que talvez o mais difícil não sejam as conquistas acadêmicas ou profissionais, mas despir-se de uma construção idealista com a qual você não pode — e nem quer — mais acompanhar. reaprender todo o caminho de silêncio, dessa vez olhar para si e não o outro. entender o que veio de fora para dentro e conseguir escolher, assim, qual o caminho a realmente ser seguido.
o que eu amo, quem eu amo, onde eu amo e como tudo isso comunica com quem eu quero ser e onde quero chegar. podemos nos surpreender (ou até descobrir tarde demais) que o que tanto aspiramos pode não ser tão autêntico. pode não vir de nós mesmos. quando penso sobre isso hoje, queria nunca ter desaprendido a ficar em silêncio.

no meio disso tudo, a vida consegue ser bela. se não fosse pela beleza, a contemplação, milagres, bondade e misericórdia, não exisitiria porquê de encarar toda essa burocracia. então hoje, aconteça o que acontecer, independente do que as pessoas vejam ou pensem de mim, quero me certificar de que haverá beleza e de que eu consiga enxergá-la. escolher minhas batalhas, levar comigo o que for leve. os pesos obrigatórios já são pesados demais.

um dia, quando eu menos esperar, vou olhar para trás e pensar: “passou”.

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Milena Vieira

cristã, amante de idiomas, fotógrafa por hobbie e escritora por necessidade (própria).